“Carnaval é a
alegria popular. Direi mesmo, uma das raras alegrias que ainda sobram para a
minha gente querida. Brinque, meu povo querido! Minha gente queridíssima. É
verdade que quarta-feira a luta recomeça. Mas, ao menos, se pôs um pouco de
sonho na realidade dura da vida!” (Dom
Helder Câmara)
Daniel
Couto (UFMG/FAPEMIG)[1]
A
alegria é uma das mais poderosas expressões da natureza humana. A busca pelo
prazer, pelo regozijo e pela euforia nos acompanha em todas as etapas da vida
e, de maneiras diversas, se tornam uma busca cotidiana. Dentro das múltiplas
facetas do ser humano, a dicotomia entre prazer e dor, alegria e austeridade,
caracterizam-se como o jogo vital da existência. Conter os impulsos, refletir
sobre a própria realidade e revisar os caminhos a serem seguidos contrapõe-se à
abundância expressiva, às gargalhadas, ao entusiasmo e à animação. Hora somos
alegria, hora mergulhamos em serenidade e melancolia. É necessário estabelecer
um “tempo favorável” para que nossa humanidade encontre, em si mesma, todas
essas características que a determinam como tal.
O tempo
no qual percebemos de maneira mais significativa a exteriorização da alegria, em
seu brilho, exuberância, canto e festa, é o carnaval. Como ação política, a
cidade se transveste em uma ocupação cidadã, as ruas são tomadas pelos foliões
que ressignificam a sua relação com o espaço onde habitam, em uma ruptura do
“tempo ordinário”. Os corpos são enfeitados e a vida se torna um espetáculo por
poucos dias. Certos limites podem ser quebrados, há uma disposição para o
festejo, um hiato no ciclo cotidiano, um ânimo para o encontro e o oásis da
afetividade. Carnavalizar é “colocar na avenida” a teatralização da vida, sem
as dores e angústias: a epifania da alegria. Diversas forças, antropológicas e
políticas, impulsionam o momento do esplendor carnavalesco como a resistência à
repressão coletiva e individual. Enquanto se cultiva uma expectativa para os
tempos de festa, os preparativos ocorrem em meio à imersão no habitual. Se o
empuxo motivado pelo carnaval nos retira do estado de normalidade, como
cultivamos, em contraposição, a austeridade e a contemplação?
Em nossa
sociedade secular, o tempo para a meditação, a contemplação e o autoexame não
se apresentam com força e atratividade. Quando somos chamados ao silêncio e à ponderação,
logo após o momento de festa, parece que é retirado de nós o entusiasmo e somos
mergulhados na lembrança do deleite passado, quase que negando a experiência da
solidão. Assim, depois do carnaval, os cristãos católicos são chamados a viver
a quaresma, um deserto de expectativa, uma austeridade fecunda que aprofunda os
laços a partir da simplicidade e do exame de consciência. A experiência
quaresmal é uma contracorrente da cultura da reificação[2],
do consumo e do desperdício. Da mesma maneira que algumas forças
político-sociais nos chamam à alegria do carnaval, também somos chamados à
austeridade da quaresma. Se a alegria nos ajuda a fugir das opressões e
pretende oferecer igualdade e liberdade, a austeridade nos ajuda a olhar
criticamente para a sociedade e perceber como é preciso agir contra a violência
sistêmica, as injustiças e a lógica predatória que nos escraviza no consumo
desenfreado. O carnaval nos conecta, uns com os outros, pela alegria, enquanto
a quaresma nos conecta pela fraternidade, pelo reconhecimento da partilha de
nossa condição humana. O oásis carnavalesco é complementado pelo deserto
quaresmal, não são opostos, mas etapas do caminho de humanização.
Enfrentamos
um ostensivo combate à expressividade humana, principalmente pelos movimentos
conservadores, que demonizam o corpo, atribuindo a ele um estatuto pecaminoso,
contrário ao que o próprio Evangelho propõe. O mistério da encarnação
caracteriza-se pela ação do divino de assumir a condição humana, em todos os
seus aspectos, concebendo dignidade a todas as mulheres e homens. Não existe um
mundo espiritual independente, buscado pela negação do corpo, nem uma
corporeidade que é desprovida da dimensão do espírito. A mentalidade que
apresenta um “divino” governador hierárquico é desconstruída na própria figura
do “filho do homem”, Jesus. A desqualificação do carnaval tem como consequência
a descaracterização da quaresma, causando sofrimento e gerando uma visão
equívoca da completude da existência.[3]
Como
movimento político, o carnaval e a quaresma também são atacados pelas forças
conservadoras, que desejam que as reflexões sociais se tornem cada vez mais
fracas, escondidas nas mazelas da periferia, reforçando o estereótipo da
desigualdade e a injustiça sistêmica. Sair às ruas em uma clara expressão de
festa, oferecendo um espaço de confronto à ordem estabelecida dos lugares
sociais, é atacado pelos “bons costumes” como vagabundismo e “pouca vergonha”.
O carnaval torna-se um rompimento da barreira dos favorecidos, pois é uma festa
popular, uma importante e reconhecida expressão cultural. Da mesma maneira,
viver a quaresma, em muitos dos casos, tornou-se uma satisfação das
necessidades de afirmação do lugar social, seja ele nas demonstrações pias de
caridade, seja nas promessas de abstinência que não passam nem perto do
espírito do autoconhecimento, mas de uma pseudo-flagelação temporária. A “camarotização”
do carnaval, tornando a manifestação popular uma mercadoria rentável e para
poucos, também atinge a experiência quaresmal, com oneroso exercícios e retiros,
guiados por religiosos famosos, confusas “orientações espirituais”, ações
caritativas dispendiosas e pontuais e uma comercialização de “objetos da fé”.
A distorção
desses dois “tempos oportunos” é um retrato do que vivemos como sociedade.
Estamos imersos em um momento onde o “capital” dita as regras, os pobres e
marginalizados são jogados, ainda mais, na miséria e as políticas sociais se
desmontam. O Brasil, reconhecido por suas imensas festas populares
carnavalescas, e premiado internacionalmente por suas conquistas na distribuição
de renda, na diminuição da fome e nas políticas de seguridade, torna-se, cada
vez mais, uma distorção do projeto democrático desejado para se tornar uma “mercadoria”.
A elitização acarreta, necessariamente, em desigualdade, concentração de
riqueza e condições de sobrevivência sub-humanas.
Em
tempos onde a verdade tornou-se tão relativa, o carnaval e a quaresma podem
oferecer para nossa sociedade um manancial de sentidos, resistência e
humanidade. Levar alegria aos que sofrem e saciar a fome dos famintos é o
caminho para a reconstrução de uma sociedade que tem esperança nos seus
indivíduos porque os enxerga como dignos e iguais. Mais do que fazer desses
momentos a presença do sagrado, é preciso resgatar nos seres humanos a pulsão
de sua natureza. A festa nos prepara para o deserto da vida, mas temos sempre a
esperança de nos regozijar na presença dos irmãos.
Assim, enquanto
tentam nos convencer que “Deus está acima de tudo”, experimentamos a alegria do
“divino que dança no meio de nós” e que nos acompanha no silêncio e na contemplação
do deserto. Enquanto tentam nos obrigar a aceitar “O Brasil acima de todos”,
experimentamos que só é possível uma nação porque existem seres humanos
irmanados por sua condição, e que somos nós que formamos um Brasil. Este Brasil
que queremos é alegre, auto reflexivo, justo e com oportunidades igualitárias.
Neste
momento, em que pontes são depostas e muros construídos, encontramos no
carnaval e no período quaresmal uma oportunidade para vivenciar um longo
processo de regeneração cultural, espiritual e educativo, capaz de formar novas
convicções, atitudes e estilos de vida fundados na consciência basilar duma
recíproca pertença, duma origem comum e dum futuro partilhado por todos.[4]
[1] Daniel Couto é mestrando em
filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e bolsista da Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), com pesquisas na área
de filosofia antiga, retórica grega, filosofia aristotélica e recepção da filosofia
antiga. Trabalha ainda com a Liturgia, a Ritualidade Cristã, a Cerimonialidade
e a Teologia Litúrgica.
[2] A reificação é um conceito que
está relacionado à transformação das coisas (inclusive os seres humanos) em
objetos de consumo. Inicialmente a reificação estava ligada à objetificação de
ideias, mas com Adorno o conceito adentra a teoria social, onde os seres
humanos perdem os traços de subjetividade, reflexão e individualidade para a
participação em um coletivo técnico de “consumo de bens”.
[3] É importante relembrar que as
comemorações do carnaval acontecem, exatamente, em relação ao ciclo quaresmal,
com a sua data definida, inclusive, pela Páscoa e Quarta-Feira de Cinzas. Ambos
são movimentos culturais profundamente imbricados.
[4] Cf.
(FRANCISCO, Laudato Si, 202)
Publicado originalmente no Portal Dom Total no dia 01/03/2019, em: <http://domtotal.com/noticia/1336865/2019/03/da-purpurina-as-cinzas/>
Publicado originalmente no Portal Dom Total no dia 01/03/2019, em: <http://domtotal.com/noticia/1336865/2019/03/da-purpurina-as-cinzas/>
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