“O amor é o
sentimento mais libertário que existe! Ele revoluciona e não requer nenhum tipo
de aquiescência da outra parte para ser exercido.” (SABBAG, Ângela Beatriz)
Daniel
Couto (Doutorando em Filosofia, UFMG/CAPES)
Em
tempos de opressão e conflitos, os cristãos se perguntam: o que fazer, tendo em
vista a nossa fé? Qual deve ser a postura daquelas e daqueles que, assumindo a
sua missão batismal, seguem a boa notícia de Jesus? Como o Cristo viveu e, de
igual modo, como posso fazer da minha vida um espelho desse modelo de
humanidade?
O
cristianismo é uma religião da libertação e do amor, tendo, na encarnação do
Deus-Menino o movimento da divindade que se debruça sobre a humanidade para
que, assumindo a nossa natureza, possa nos elevar até a dignidade divina. Isso
não rejeita a humanidade para apontar um caminho “sobre-humano”, mas mostra
que, em nossa natureza e condição, somos capazes de seguir o caminho proposto
por Jesus. Ele é a Palavra visível, pois com todos os nossos sentidos somos
capazes de ser fiéis à Palavra de Deus, buscando a paz e a justiça. É no
seguimento dos seus passos, que apontam para o Reino, que vamos nos formando
como corpo eclesial.
Retomando
essa experiência do convívio com o Senhor, podemos identificar diversos
momentos onde ele se confronta com os fariseus, com os poderes instituídos e
com os próprios discípulos para “alterar” a lógica dominante, apontando que é
no amor e na caridade que se constrói os princípios da fidelidade a Deus. Ele
impede o julgamento público da mulher adúltera, ele se baqueteia com os
“cobradores de impostos”, se enfurece com a profanação do templo pela
mercantilização da fé, se curva e toca os excluídos da sociedade restaurando
para eles a saúde e a dignidade. Jesus é, no modo genuíno, político ao se
posicionar contra a opressão, ressaltando, inclusive, que há uma distinção
entre o que é “de Deus” e o que “é de César”. Como ação pública libertária, o
Cristo está constantemente fazendo uma revolução política que o leva,
inclusive, à condenação.
A
realeza do Filho de Deus, portanto, não é autoritária, ao contrário, se
demonstra como um reinado de amor, doação e serviço. Para isso, é preciso
combater toda a forma de autoritarismo, fazendo da fé o guia para a ação. Na
presença do Messias, os discípulos se formaram enquanto comunidade de partilha,
de escuta, de caminhada. Ao ressuscitar e enviar o Espírito, Jesus dá, aos seus
seguidores, o mandato de continuar as suas obras, e não apenas de contemplar o
seu mistério divino. A ação política iniciada pelo mestre deve ser ampliada,
para os quatro cantos da terra, por cada um e cada uma que assume, para si, o
título de cristão. Essa ação, sobretudo, deve ser de combater, com os mesmos
meios que Jesus usou, toda forma de autoritarismo e opressão. “Ide, pois, e
anunciai o Evangelho a toda criatura” não é somente uma demonstração de fé,
mas, principalmente, a responsabilidade do resgate da dignidade (vida) humana.
Quando
as primeiras comunidades eram perseguidas pelo Império Romano, e precisavam
viver na clandestinidade para sobreviverem, esse confronto com o autoritarismo
se demonstrou de maneira visceral: ou lutamos para sobreviver; ou somos
condenados às arenas. Essa confrontação se dava, sobretudo, na demonstração de
um modelo de vida, e de humanidade, que se diferenciava, profundamente, daquele
costumeiro do império. Após séculos de repressão, ao ser assumida como a
religião romana oficial, o cristianismo venceu a luta contra o autoritarismo se
tornando, de algum modo, mais uma ferramenta de opressão. O que a Igreja passou
a representar, se imbricando na política de uma maneira muito diferente da
proposta por Jesus, distanciou-se da libertação e começou a flertar com a
estrutura hierárquica e autoritária da burocracia de Roma. Os cristãos deixaram
de ser o contraponto par ser o “poder instituído”. A força revolucionária do
novo modelo de humanidade passou a ser entendido “dentro da organização
romana”. Das casas e da comunidade, os cristãos passaram para os palácios e decretos.
Mas será que a proposta do Reino de Deus estava, de fato, esquecida?
Retomando
o princípio evangélico, sabemos que o “maior mandamento” de todos é o amor.
Somente ele é capaz de nos modificar, de tal forma, que as relações com o mundo
são transformadas a partir da ótica/mediação de Jesus. O amor ilimitado e sem
condições, que deve ser oferecido de maneira ampla, considerando a diversidade,
a dignidade, a comunhão e a esperança, é a bandeira pela qual os cristãos devem
marchar. O amor é o “impulso de ação” dos cristãos. A ocupação dos espaços
deliberativos com o discurso do amor, agindo política e socialmente, é a
responsabilidade colocada nos “ombros” do cristão junto com a veste batismal.
Na perspectiva cristã, cada pessoa é entendida dentro do contexto da sua
relação comunitária, de pertencentes à família humana, sem a exclusão ou discriminação
de qualquer um dos quais partilham a mesma natureza.
Esse
“impulso de ação” é entendido, em algumas perspectivas filosóficas, a partir do
conceito de imperativo. Ele é determinado como um caminho “necessário” para
aqueles que, de algum modo, decidem segui-lo. Enquanto a filosofia se debruça
sobre imperativos morais, atribuídos a toda a humanidade pela partilha da
razão, o imperativo da fé cristã é o amor. Em outras palavras, só é possível se
considerar cristão se, e somente se, o sujeito age “necessariamente” no mundo a
partir do imperativo do amor. Toda e qualquer postura política e social que
visa a imposição de um modelo intransigente sobre os outros, negando a
diversidade e oprimindo as expressões individuais é, fundamentalmente,
contrário ao imperativo do amor. O amor acolhe, acompanha e suporta (cf. 1 Cor
13, 4-8) citação do amor). Por isso, o cristão deve se posicionar, e agir,
contra o autoritarismo, o racismo e o fascismo que, camuflados, inclusive
dentro da própria instituição da fé, buscam silenciar a “boa notícia do amor”.
Na
sociedade contemporânea, onde o cristianismo adquire várias faces, é preciso
tomar cuidado com a propagação de ideais excludentes e autoritários que
utilizam a linguagem e os símbolos religiosos para seguir, exatamente, o
movimento contrário daquele proposto por Jesus. Não se pode usar a estrutura
hierárquica, a divisão dos ministérios e a inserção em uma comunidade para agir
de modo autoritário. Nenhum exercício religioso cristão pode ser
discriminatório, uma vez que se funda em Cristo e, deste modo, na inclusão e no
amor. Uma Igreja autoritária é uma igreja “desviada” da Palavra. Os muitos
cristãos que fazem barulho pedindo medidas violentas e reivindicando um regime
autoritarista não se deixaram transformar pela encarnação. Esses “fiéis”
contemplar um Deus-Poderoso assentado no trono e esquecem que o maior mistério
da fé é a abreviação do Verbo, tornando-se “um conosco”.
O
imperativo do amor é aquele que nos mostra que Deus não está acima, mas do lado
do seu povo. Ele é um agente político que, incansavelmente, se coloca na defesa
dos mais pobres, excluídos e injustiçados. O distanciamento da fé e da
política, reivindicados na virada da modernidade, buscava, exatamente, libertar
a sociedade do autoritarismo. Porém, por outros meios, essa marca nefasta da
nossa existência retorna, em cada tempo, com discursos e propósitos renovados.
Se a religião e o estado não podem se fundir em uma mesma instituição,
precisamos ter a consciência de que um sujeito não existe de maneira isolada,
princípio da Igreja, e é na partilha e na “vida comum” que se sustenta a
política.
Deste
modo, é “imperativo do cristão” lutar contra qualquer forma de exclusão,
discriminação, autoritarismo e injustiça. Quando as bandeiras de movimentos
libertários são levantadas, o cristão tem a oportunidade fazer luzir sua veste
batismal e participar ativamente da “luta do povo”. A vida e o ensinamento de
Jesus nos ajuda a enfrentar com coragem qualquer forma de “subjugação” da
humanidade e nos faz, claramente, lutar pela dignidade humana. Como vivemos no
tempo, e a cada momento somos confrontados por questões novas, a nossa
orientação é sempre a mesma: na dúvida, volte a Jesus. Voltando ao encontro com
o Cristo, “ser humano em plenitude”, percebemos que ser um agente consciente da
política é uma ação de amor! O imperativo do amor, o imperativo cristão, o
imperativo da fé é ser “um com os irmãos” na luta pelo reino de paz, justiça,
igualdade e esperança.
Publicado originalmente no Portal Dom Total no dia 05/06/2020, em:
<https://domtotal.com/noticia/1450225/2020/06/o-imperativo-do-amor-lutar-pela-libertacao/>
<https://domtotal.com/noticia/1450225/2020/06/o-imperativo-do-amor-lutar-pela-libertacao/>
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