sexta-feira, 27 de março de 2015

O RESGATE DA DIGNIDADE HUMANA COMO CAMINHO DE CONVERSÃO

Daniel Couto

É nítido, hoje, no cotidiano dos seres humanos, um processo de “invisibilidade” dos problemas ou situações que "não os afetam diretamente". Não é raro encontrarmos pessoas com dificuldades extremas e nem ao menos nos importarmos com o sofrimento alheio. É uma onda de individualismo – que se opõe em certa medida à individualidade – que se alastra pelas diversas camadas do convívio social.

Esse fenômeno, que a meu ver não pode ser desligado do exagero consumista dos “pacotes de felicidade”, transforma gradualmente os indivíduos – entendidos como homens e mulheres capazes de reconhecer sua singularidade, agentes no ambiente social – em simples reprodutores das maquinas e produtos midiáticos aos quais são expostos. Esses reprodutores perdem o senso crítico e, também, a capacidade de reconhecer, no diferente – e principalmente no diferente daquilo que é vendido nas mídias –, a dignidade e a igualdade que há entre eles na condição humana.

Com toda essa transformação das relações sociais, o que parece intrínseco à nossa natureza, e também elemento importante para a preservação da vida - que é o interesse pelo outro -, se torna cada vez mais superficial ou pautado pela reciprocidade. Quanto mais entranhados neste sistema maiores são as nossas “taxas” para os relacionamentos. Quanto maior é a nossa exigência, menores são as possibilidades de ligações interpessoais. Permanece, e se fortalece, a nossa distância com a natureza humana em sua essência.

Esse afastamento pode ser uma consequência de relações psicológicas e culturais que se desenvolveram com o passar dos anos, mas é, acima de tudo, um afastamento não reflexivo de si mesmo. Não tenho a pretensão de postular o problema como sendo desta ou daquela natureza, quero apenas apresenta-lo com um problema existente e não teórico.

Como este é um questionamento existente, precisamos então de um método (μέθοδος), no sentido grego, de um sistema, um caminho pelo qual podemos superar e nos reencontrar. Esse método, como dissemos no título deste texto, é uma conversão, pois precisamos retornar à percepção do ser humano que deixamos se perder no decorrer do tempo. Para isso, ouso apontar três degraus iniciais da caminhada.

i) Reconhecer-se como pessoa humana pertencente a um grupo estabelecido de outros seres humanos. Você não é um ser isolado no mundo;

ii) Percebendo-se participante de um grupo, reconhecer que todos, apesar das particularidades, partilham da mesma natureza. Ou seja, em sua essência são iguais;

iii) Passar a agir, com (e junto) (a)os membros do grupo - extrapolando os limites do seu circulo social - com o olhar da dignidade. Por mais diferente, excluído, distante da minha expectativa que o outro seja, ele tem a mesma dignidade que você. É necessário passar a olhar o outro com o olhar da igualdade; 

Estes três passos podem parecer simples em sua estrutura argumentativa, porém são exaustivos em questões práticas. Estamos profundamente enraizados em uma cultura que caminha contrária a estes postulados. Deixemos claro, porém, que tais direcionamentos não pretendem anular as diferenças e as distintas funções dentro da sociedade, como por exemplo, os professores e estudantes, o gerente e sua equipe, dentre outros casos, mas sim dizer que mesmo com essas diferenças o que mais importa é a dignidade humana em sua máxima expressão. Essas relações não podem ultrapassar a relação do indivíduo com o seu semelhante.

Penso que este é apenas o primeiro passo para uma extensa caminhada de retomada da autenticidade do ser humano e da reconciliação consigo mesmo. Somos um mistério complexo, mas cada um de nós tem, por natureza, a sua própria existência para poder, através do autoconhecimento, desbravar.

Publicado originalmente no jornal Opinião e Notícias da Arquidiocese de Belo Horizonte no dia 27/03/2015, em: <http://arquidiocesebh.org.br/noticias/o-resgate-da-dignidade-humana-como-caminho-de-conversao/> e revisado no dia 25/06/2020.