terça-feira, 11 de agosto de 2020

COMUNIDADE: ESCOLA DA FÉ

“Crer em Igreja significa experimentar em comunidade o que a fé diz e propõe. Na comunidade, não só se esclarecem as próprias experiências humanas, como também se escuta e se vê a fé vivida, testemunhada pelos outros.” (LIBANIO, Eu creio, nós cremos, 2004, p. 255) 

Daniel Couto (Doutorando em Filosofia, UFMG/CAPES)

Muitos dos discursos contemporâneos sobre a fé tendem a colocar a dimensão da espiritualidade e da religiosidade no âmbito pessoal. Além de ser um movimento paradoxal em relação ao fundamento da fé, essa visão também é perigosa para a vida comunitária, levando a relação da divindade-sujeito para a esfera da privacidade. Escutamos, muitas vezes, as expressões “eu vivo a minha fé”, “minha religião sou eu e Deus”, “cada um tem a sua fé”, dentre outras, que parecem colocar a experiência com o divino a partir de vontades e parâmetros particulares.

Se retomarmos as experiências religiosas primitivas, em uma análise da história das religiões, perceberemos que há um elemento comunitário importante. É sempre um “povo”, uma “tribo”, uma “comunidade” que se articula, às vezes em torno de um líder/mediador, para cultuar e se relacionar com o divino. O mistério é comtemplado conjuntamente e, a partir da partilha dessas experiências, as narrativas religiosas se constroem e os mitos e ritos de solidificam. Religiões são fenômenos culturais, e, portanto, coletivos. Quando digo que “creio dessa maneira”, estou participando de uma herança cultural que me deu os pressupostos, os caminhos e as possibilidades de crença. Mesmo nas narrativas fantásticas do cinema, das artes e da literatura, podemos perceber que a “criação” se encontra como “releitura” das tradições já estabelecidas.

Assim, como não encontramos um “ser humano” isolado da sua sociedade e cultura, não é possível falar de uma fé atômica, isto é, um sujeito que vive de maneira singular, independente e totalmente autêntica a sua experiência religiosa. Ele é herdeiro e participante de um grupo que “enxerga” o mistério do divino a partir de um prisma. Mesmo dentre as nossas expressões religiosas, podemos encontrar heranças anteriores, conexões com crenças primitivas, mitos que se repetem e estruturas que são basilares para a fé em diversos períodos da humanidade. Somos inseridos nesses mistérios por duas vias: pelos fatores externos-culturais e pelos processos iniciáticos.

O primeiro desses caminhos, os fatores externos-culturais, não são controláveis pelos sujeitos, uma vez que, desde a infância, o seu meio apresenta uma série de narrativas sobre as quais ele ainda não desenvolveu uma reflexão. Questões como a existência divina, as características de Deus, a maneira de nos relacionar com ele, e diversas outras, são ensinadas direta e indiretamente pelo conjunto social. Neste caso, não é preciso que nossos familiares nos ensinem tais pressupostos, pois a sociedade na qual estamos inseridos faz isso de maneira inconsciente. Os discursos, os meios de comunicação, as instituições, tudo ao nosso redor age sob um pressuposto religioso. Até mesmo as iniciativas contra religiosas precisam admitir esse pano de fundo sobre o qual construímos a nossa vida.

Do outro lado, o caminho do processo iniciático é mais sistemático e insere os sujeitos dentro de uma tradição religiosa. Para além da religiosidade que permeia a sociedade, essas pessoas passarão a seguir uma série de códigos, ritos e preceitos que as coloca dento de um grupo e, ao mesmo tempo, a conscientiza dessa relação sujeito-divindade. Passamos a assimilar essa tradição como “nossa”, reconhecemos nos outros um modelo para o “comportamento religioso” e tendemos a fortalecer essa visão em comparação às outras. A iniciação é fundamental e pode acontecer no âmbito doméstico, institucional ou comunitário. Esse pertencimento é “consagrado”, na maioria das tradições, por algum tipo de rito(s) de passagem. Participar do rito é assinalar, em si mesmo, a sabedoria da tradição.

Nos dois casos, portanto, percebemos que o pilar da fé é a confiança. Muitas analogias já foram feitas, inclusive sobre uma fé laica, cotidiana, em situações triviais como pegar um avião ou entrar em um elevador, que apontam essa tendência do ser humano de “confiar”. Ter fé é acreditar em algo, a partir da narrativa estabelecida, e seguir adiante. Quando temos fé, no sentido religioso, estabelecemos uma conexão com o divino que não precisa ser questionada, no sentido da possibilidade, mas é tomada como pressuposto e assumida em nosso cotidiano. O traço identitário da humanidade que nos leva a crer em algo é, muitas das vezes, conduzido para as curiosidades basilares: “de onde viemos”, “o que acontece após a morte”, “a existência do universo”, dentre outras. A ciência e as religiões, portanto, vão construir respostas para essas indagações, tomando, cada uma, o seu método, mas, valendo-se da mesma natureza: a fé. Claro que não estamos dizendo que a ciência seja baseada na fé, mas é a nossa postura crente, a nossa confiança no “método científico”, que nos levou aos maiores avanços civilizacionais/tecnológicos.

Acreditamos naquilo que acreditamos, primeiro pela inserção em uma cultura, segundo pelo processo de iniciação. A fé é: confiança, crença, admitir que existe uma dimensão que vai além da minha compreensão primeira, seja ela religiosa ou não. Por isso, voltamos ao argumento inicial e ressaltamos sua dimensão comunitária.

Esse percurso que fizemos até agora nos leva a um ponto fundamental: a educação. Todos os sujeitos, segundo suas características, são formados pelos fatores externos-culturais, pelo seu grupo comunitário e pela participação nas instituições de “instrução formal”. Essa compreensão global da formação, que chamamos de educação, não é uma caminhada solitária, na medida em que é preciso oferecer os acessos, fomentar materialmente, desenvolver os aspectos sócio emocionais e incentivar as competências individuais. Nenhum sujeito se educa sozinho, mas depende da comunidade onde está inserido para entender e decodificar o mundo. A comunidade oferece o substrato físico, psico, político e social para que os sujeitos se tornem quem são. Quando isso nos é oferecido, não nos portamos de maneira crítica, pelo menos não inicialmente.

Se somos formados pela “comunidade”, porque seria diferente em relação a fé?

No âmbito da espiritualidade e da religiosidade, a comunidade possui a primazia. Mesmo que sejamos participantes de uma tradição religiosa muito bem estruturada, com uma teologia consolidada e difundida, só é possível experimentar o divino no âmbito da comunidade. É juntamente com os “outros”, irmanados pela caminhada da fé, que conseguimos acessar a divindade, e, como desdobramento, viver essa dimensão de maneira particular. A fé é, ao mesmo tempo uma adesão pessoal e comunitária, no sentido em que, sem a comunidade não é possível aderir a uma caminhada, e, sem os sujeitos, não se pode constituir uma comunidade. Formar-se na fé consiste no processo dialético constante entre a “minha participação” e a “vida comum”.

É nesse sentido que a Igreja Católica tem, como centro, a experiência eucarística. Na “mesa comum” cada um se alimenta do corpo divino e, na sua particularidade, é chamado a viver o coletivo. A tradição cristã, desde as suas primeiras comunidades, fortalece a partilha como unidade. Pode parecer paradoxal a experiência de fragmentar-se para unir, mas o processo da fé é exatamente esse. O que eu tenho é partilhado comigo pelo divino (a vida) e, consequentemente, é preciso partilhar com o “outro” (na vida). Temos, por isso, um axioma norteador: “acreditamos naquilo que celebramos, celebramos aquilo que acreditamos” (lex orandi, lex credendi).

Como seres humanos, somos formados pela comunidade na medida em que formamos a comunidade. Não é possível “sair” da nossa existência para “explicá-la”. Confiamos, uns nos outros, pois não é possível viver desvinculado da nossa comunidade. A fé advém dessa confiança, no pertencimento a uma história que se constrói a todo instante, fazendo dos sujeitos receptores e agentes de um fluxo contínuo de vida. A fé move e forma a comunidade, guiada pelo espírito coletivo, ao mesmo tempo em que a vida comunitária educa para a fé. Não é possível que um exista sem o outro, e, nessa dupla dependência, precisamos cuidar para que as duas dimensões estejam saudáveis. Uma humanidade que busca se compreender enquanto tal precisa resgatar essa primitiva lição: “ninguém se basta a si mesmo”.