sábado, 19 de agosto de 2017

A FILOSOFIA DA RELIGIÃO

Daniel Couto (UFMG/FAPEMIG)

A filosofia se dedica ao estudo dos princípios. Entender a dinâmica da gênese do conhecimento, da origem do ser, os fundamentos da natureza humana, os princípios da ética e diversas outras perguntas basilares sustenta a atividade do filósofo e do pesquisador da filosofia. A natureza do saber filosófico está no questionamento profundo e na resposta baseada na razão e em argumentos coerentes e válidos que apresentam uma possibilidade de leitura sólida em sua estruturação.

Quando pensamos nas investigações possíveis da filosofia, encontramos – sem dúvida – os questionamentos sobre o divino. Essas investigações entram no quadro do que chamamos de filosofia da religião.

Assim, investigar e interpretar as diversas práticas e fenômenos religiosos está ligado ao interesse do homem pelo próprio enigma que é a sua existência. Tal existência se manifesta com elementos simbólicos e narrativos que ultrapassam, em grande parte, a compreensão do visível, se valendo de elementos e alegorias para falar do que é “mistério”, “enigma”, “transcendente”.

Desta maneira, o estudo do religioso é um processo histórico e precisa ser feito com critério, avaliando as diversas possibilidades e nuances permitidas por cada denominação e manifestação. No lugar de investigar um exemplo de religião específica, a filosofia da religião busca identificar os traços que aproximam e distanciam as religiões e o que está ligado à natureza humana, às relações sociais, ao contexto histórico/cultural, aos interesses políticos/econômicos, ao âmbito do transcendente, ao místico, ao simbólico e ao narrativo. Assim, uma das perspectivas que a filosofia da religião adota é de que a religião é um processo histórico, e dessa maneira evolui com o decorrer do desenvolvimento da humanidade. Não é uma percepção da evolução no sentido de progresso ou avanço tecnológico, mas uma caminhada conjunta com a própria consciência que a humanidade toma de si.

De maneira esquemática, podemos apresentar três aspectos importantes estudados pela filosofia da religião em sua análise dos fenômenos e sistemas religiosos: o aspecto eidético, o aspecto valorativo e o aspecto verificativo. Denomina-se aspecto eidético aquilo que está ligado à essência do fenômeno religioso, seu significado, sua gênese e o seu lugar dentro a experiência humana. No segundo movimento, o aspecto valorativo está relacionado ao valor, à autenticidade, ao lugar razoável ou não do sistema religioso dentro da cultura, crença e vivência de um povo.

Estes dois primeiros aspectos estão ligados ao espanto do homem com a sua própria natureza, a sua vida e o mundo, que procura dar algum sentido a tudo isso. A religião, então, se torna essa narrativa possível, que traz esperança e conforto à existência.

O terceiro, o aspecto verificativo, se pergunta pela verdade desta manifestação/fenômeno. Tais denominações religiosas, de fato estão ligadas ao mistério e cumprem a função de dar sentido à vida? As respostas são coerentes, tanto dentro do próprio sistema, quanto ao serem confrontadas com outras perspectivas? As tradições religiosas humanas dizem sobre o homem, dão sentido à existência e apontam/testemunham um “mistério”? Existem razões para aceitar algum destes sistemas/tradições?

Percebemos que o fenômeno religioso nos surpreende e nos coloca na própria reflexão do homem. O interesse da filosofia da religião é o mesmo que o do homem que busca sentido na religião para sua própria existência. O fenômeno religioso não é um simples dado, uma narrativa supersticiosa e inocente sobre a realidade, ele nos espanta, nos leva a reflexão e à ação, da mesma forma que se origina destes movimentos.

Por este percurso, a filosofia da religião chega à questão da própria existência do divino. Nota-se que a resposta primeira que se busca não é comprovar a existência de deus, ou das divindades, nem apontar qual cosmogonia é a verdadeira ou qual doutrina realmente espelha aquilo que é possível dizer do mistério. O questionamento sobre a existência da divindade entra na validade, coerência e plausibilidade da religião e naquilo que ela nos apresenta como resposta e sentido da vida. Inúmeros pensadores contribuem para a questão da prova ou da aniquilação do divino, do seu lugar na construção social e na possibilidade de se experimentar, ou não, o contato com o transcendente/imaterial.

A relação do humano com o divino é intrínseca e, na maioria dos fenômenos religiosos, torna-se uma relação imbricada. Feuerbach nos diz que:

Deus é a essência do homem mais subjetiva, mais própria, separada e abstraída, e assim não pode ele agir de si, assim todo bem vem de Deus. Quanto mais subjetivo, quanto mais humano for o Deus, tanto mais despoja-se o homem da sua subjetividade, da sua humanidade, porque Deus é em e por si o seu ser exteriorizado, mas do qual ele se apropria novamente. Como a atividade arterial impulsiona o sangue até as extremidades e as veias o trazem de novo, como a vida em geral consiste em uma constante sístole e diástole, também a religião. Na sístole religiosa expulsa o homem a sua própria essência para fora de si, ele expulsa, repreende a si mesmo; na diástole religiosa acolhe novamente em seu coração a essência expulsa. Somente Deus é o ser que age de si – este é o ato da repulsão religiosa; Deus é o ser que age em mim, comigo, através de mim, sobre mim e para mim, é princípio da minha salvação, das minhas boas intenções e ações, logo, do meu próprio bom princípio e essência – este é o ato da atração religiosa. (FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. p. 59-60)

O texto de Feuerbach, apesar de colocar o homem como o próprio criador dos deuses e ter na transcendência a própria imagem de si, nos mostra que o fenômeno religioso possui um movimento de distanciamento e aproximação da natureza humana. A investigação do fenômeno religioso, é, em suma, uma investigação do homem.

A filosofia da religião é um campo importante para a investigação filosófica, se debruça sobre um dos fenômenos mais latentes da natureza humana, busca respostas importantes que auxiliam no desenvolvimento dos próprios sistemas religiosos, questiona e dialoga com a teologia e enriquece o debate sobre o papel, a natureza e a essência das religiões.

Referências:

- FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Petrópolis: Editora Vozes, 2007.
- COTTINGHAN, John. A dimensão espiritual: religião, filosofia e valor humano. São Paulo: Loyola, 2008.
- GRECO, Carlo. A experiência religiosa: essência, valor, verdade. São Paulo: Loyola, 2009.
- DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Paulinas, 1989.

Publicado originalmente no Portal Dom Total no dia 18/08/2017: http://domtotal.com/noticia/1181121/2017/09/a-filosofia-da-religiao/